Direito municipal, novas tecnologias, e livre iniciativa: os conflitos modernos vividos pelos municípios paranaenses

Direito municipal, novas tecnologias, e livre iniciativa: os conflitos modernos vividos pelos municípios paranaenses

Como podemos ver, a sociedade está se modernizando em uma velocidade inacreditável.

E não poderia ser diferente com o direito público, e principalmente com os municípios; que, visando o bem-estar da população, buscam regular e acompanhar essa atualização.

Entretanto, é difícil definir quais os limites que permitem ou proíbem a interferência do Estado na vida do cidadão.

Sabe-se que em municípios pequenos o lucro dos taxistas é ínfimo (poucas “corridas”, trajetos muito curtos etc), ainda mais agora com o surgimento de outras alternativas que visaram baratear o transporte.

Além do mais, estas alternativas (uber/99e e outros) não sofrem o mesmo controle Municipal que os taxistas (o que torna inclusive o trabalho destes mais oneroso).

A partir daí surgiu a seguinte discussão na justiça:

Poderia um município – visando proteger/ garantir a perpetuação da atividade dos taxistas locais –  editar lei proibindo o uso de aplicativos de transporte de passageiros (Ex: uber/99-e e outros)?

O STF decidiu que os Municípios – ao editarem as leis locais regulamentando o transporte de passageiros mediante aplicativo (Ex: uber e 99-e) –   deverão observar as regras impostas pela Lei  federal nº 13.640/2018.

E também decidiu que as leis municipais não podem proibir o serviço de transporte de passageiros mediante aplicativo.

Vamos entender isto melhor:

Significa dizer que, os gestores e legisladores municipais, ao regulamentar e fiscalizar do transporte privado individual de passageiros, não podem “atropelar” as regras gerais fixadas na Lei Federal.

Apesar de cada município ter sua cultura local (que deve ser respeitada), as adaptações precisam ser feitas sempre dentro dos parâmetros da Legislação Nacional.

Nos termos do art. 22, XI, da CF/88 –  compete à União legislar sobre o tema “trânsito e transporte”.

Tanto é verdade que o CTB é lei federal e não pode ser alterada por outra lei de um município.

Sendo assim, fica a dica aos gestores e Legisladores municipais:

Proibir ou restringir a atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional, e viola aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência.

STF. Plenário. ADPF 449/DF, Rel. Min. Luiz Fux; RE 1054110/SP, Rel. Min. Roberto Barroso, julgados em 8 e 9/5/2019(repercussão geral). (Info 939).

A quem se interessar, vamos Explicar melhor a Lei nº 13.640/2019:

Em 2018, com a onda dos aplicativos de transportes, foi publicada a Lei federal nº 13.640/2018, com o objetivo de regulamentar o transporte individual de passageiros (transporte privado e pago).

O que é o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros?

O conceito legal de Transporte remunerado privado individual de passageiros é:

  1. Serviço remunerado de transporte de passageiros,
  2. Não aberto ao público,
  3. Para a realização de viagens individualizadas ou compartilhadas (ex: uberPOOL ou uber juntus; 99-e);
  4. Solicitadas exclusivamente por usuários cadastrados em aplicativos;
  5. ou outras plataformas de comunicação em rede.

Em outras palavras, depois de tantas brigas entre taxistas e outros transportadores privados, a Lei nº 13.640/2018 trouxe algumas regras para disciplinar o trabalho dos chamados motoristas de aplicativos (Uber, Cabify, 99 etc.).

Em linhas gerais, o que fez a Lei nº 13.640/2018?

Autorizou exclusivamente os Municípios a regulamentar e fiscalizar o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros.

Diretrizes impostas pela lei federal:

A Lei nº 13.640/2018 afirmou que, quando os Municípios (ou DF) forem editar as suas leis regulamentando os serviços, eles deverão impor no mínimo algumas diretrizes.

Assim, a lei municipal deve exigir:

  1. a) que os serviços de transporte por aplicativos sejam prestados com eficiência, eficácia, segurança e efetividade;
  2. b) cobrança dos tributos municipais devidos pela prestação do serviço (ISS e taxas);
  3. c) a contratação de seguro de Acidentes Pessoais a Passageiros (APP) e do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT);
  4. d) que o motorista seja inscrito como contribuinte individual do INSS (art. 11, V, “h”, da Lei nº 8.213/91).

Condições pessoais impostas aos motoristas

A Lei nº 13.640/2018 também trouxe algumas exigências pessoais ao motorista que trabalha com os serviços de transporte por aplicativo.

Assim, pela lei, os motoristas de Uber e similares deverão, PELO MENOS:

“I -possuir Carteira Nacional de Habilitação na categoria B ou superior que contenha a informação de que exerce atividade remunerada;

II -conduzir veículo que atenda aos requisitos de idade máxima e às características exigidas pela autoridade de trânsito e pelo poder público municipal;

e do Distrito Federal. Exs: exigência de que o veículo tenha um limite máximo do ano de fabricação, que tenha adesivo ou uma placa removível do aplicativo no para-brisas et;

III – emitir e manter o Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV);

IV -apresentar certidão negativa de antecedentes criminais”.

Mas DR. Buligon, e se o serviço for prestado no Município (ou DF) contrariando essa Lei?

R: isto caracterizará transporte ilegal de passageiros.

E Dr. Buligon, essa regulamentação é obrigatória? Os Municípios (e DF) devem criar leis pra regular a atividade?

R: NÃO. O Município (ou DF) pode optar por não regulamentar tais serviços.

Enquanto as Municipalidades não editarem suas leis, o serviço poderá ser prestado?

R: SIM. Os serviços de transporte de passageiros mediante aplicativo não dependem de autorização prévia e podem continuar sendo prestados normalmente mesmo sem regulamentação municipal.

Os Municípios, ao editarem as leis locais regulamentando o transporte de passageiros mediante aplicativo, poderão contrariar a Lei nº 13.640/2018?

R: NÃO. No exercício de sua competência para regulamentação e fiscalização do transporte privado individual de passageiros, os municípios e o Distrito Federal não podem atentar contra os parâmetros fixados pelo legislador federal.

Isso porque compete à União legislar sobre “trânsito e transporte”, nos termos do art. 22, XI, da CF/88.

Os Municípios podem proibir o transporte de passageiros mediante aplicativo? Podem proibir o serviço desempenhado pelo Uber e similares?

R: NÃO. Se uma lei municipal ou distrital proibir essa atividade, ela deve ser considerada inconstitucional.

Exemplos:

  • STF julgou inconstitucional a Lei nº 10.553/2016, do Município fortalezense, que proibiu a utilização de carros cadastrados ou não em aplicativos (ADPF 449/DF).
  • Além disso, o STF também considerou inconstitucional a Lei Paulistana nº 16.279/201, que igualmente proibia o uso de veículos cadastrados em aplicativos (RE 1054110/SP).

Aliás, uma dúvida recorrente, é sobre o regime previdenciário dos motoristas de aplicativos.  Aproveitamos, de passagem, para responde-la:

Os motoristas de aplicativo, devem contribuir para a previdência social?

R: SIM.

A Lei nº 13.640/2018 informa que os motoristas de aplicativo são segurados obrigatórios do regime geral da previdência social, devendo, portanto, recolher (pagar) contribuição previdenciária. O município deve realizar essa fiscalização, O motorista de transporte remunerado privado individual de passageiros recolherá sua contribuição ao RGPS por iniciativa própria, conforme previsto no art. 30, II, da Lei nº 8.212/91:

Art. 30. A arrecadação e o recolhimento das contribuições ou de outras importâncias devidas à Seguridade Social obedecem às seguintes normas:

(…)

II – os segurados contribuinte individual e facultativo estão obrigados a recolher sua contribuição por iniciativa própria, até o dia quinze do mês seguinte ao da competência; ”

Portanto, não acredite quando disserem “o Uber é barato porque não paga imposto”, pois a empresa de aplicativo pagará o valor “cheio” ao motorista e este é quem deverá pagar a contribuição previdenciária.

Esclarecido esse ponto, adiante vamos entender melhor os fundamentos das decisões da justiça (que proíbem os municípios de editar leis que impeçam a atividade de Uber e outros):

  • Direito ao Livre exercício da profissão

O Ministro Fux entendeu que o motorista particular, em sua atividade laboral, é protegido pela liberdade fundamental prevista no art. 5º, XIII, da CF/88 e se submete apenas à regulação proporcionalmente definida em lei federal:

“Art. 5º

(…)

XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”;

  • Compatibilidade com a legislação federal (Dica aos Gestores Municipais)

Além da Lei nº 13.640/2018, o serviço de transporte por aplicativos deve ser prestado em respeito as seguintes leis:

  1. a) a Lei de Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587/2012) e com o art. 3º, VIII, do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014):

“Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios:

(…)

VIII –liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei. ”

  • Livre iniciativa

A liberdade de iniciativa, garantida pelos arts. 1º, IV, e 170 da CF/88, consubstancia cláusula de proteção destacada, no ordenamento pátrio, como fundamento da República.

Por essa razão, é possível que o juiz interfira quando o Município editar leis que afrontem as liberdades econômicas básicas.

  • Restrição da atuação do Estado no funcionamento da economia (Tema de Direito Regulatório)

Segundo o constitucionalismo moderno, é necessário frear os exageros da intervenção estatal sobre o funcionamento da economia de mercado, de modo a impedir leis que concedam privilégios, monopólios; ou a estabeleçam salários, fixem preços e padrões arbitrários/baixos/enganosos de qualidade.

Tais iniciativas do Estado são arbitrárias e restringem a competição, a inovação, o progresso e a distribuição de riquezas.

É que o processo político por meio do qual as regulações são criadas é frequentemente influenciado por grupos de poder interessados em obter proveitos superiores aos que seriam possíveis em um ambiente de livre competição.

Uma prática espúria, muito utilizada por esses grupos, é o controle de entrada de novos competidores em um dado mercado, a fim de concentrar benefícios em prol de poucos e dispensar prejuízos por toda sociedade.

Sabemos que, do ponto de vista da economia do município, a abertura de mercado (e de possibilidades) pode parecer cruel (pois eventualmente acarreta a quebra de negócios antigos em uma cidade); mas, de outro lado, a única maneira de se fomentar o desenvolvimento, o crescimento econômico regional, e a arrecadação, e evitando as barreiras protetivas de grupos e famílias com negócios e comércios consolidados

A grande preocupação dos municípios, nos casos dos aplicativos, é que o Ente praticamente perde o controle (indireto) sob esta atividade econômica, já que os motoristas se submetem à lei, mas não sofrem o mesmo controle que os taxistas (o que encarece bastante o serviço).

Assim, as normas municipais que proíbem o uso de carros particulares, cadastrados ou não em aplicativos, para o transporte remunerado individual de pessoas, configuram limitação desproporcional às liberdades de iniciativa e de profissão, o que provoca restrição oligopolista do mercado em benefício de certo grupo e em detrimento

da coletividade.

  • Busca do pleno emprego

A proibição dos aplicativos de transporte ataca ainda o princípio da busca pelo pleno emprego, que está consagrado como princípio constitucional (no art. 170, VIII, da CF/88).

Isso porque essa proibição impede a abertura do mercado a novos entrantes eventualmente interessados em migrar para a atividade, veja:

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(…)

VIII – busca do pleno emprego”;

Leis de ordenação das cidades devem respeitar as liberdades fundamentais constitucionalmente previstas.

A Constituição impõe ao legislador municipal que, ao editar lei de ordenação das cidades, adote medidas que não imponham restrições injustificáveis às liberdades fundamentais de iniciativa e de exercício profissional.

A política legislativa local não pode sucumbir à pressão política das forças econômicas, sob pena de violar a constituição.

A necessidade de aperfeiçoar o uso das vias públicas não autoriza a criação de oligopólio prejudicial a consumidores e a potenciais prestadores de serviço do setor, notadamente quando há alternativas  conhecidas para o atingimento da mesma finalidade.

  • Inovação disruptiva: O que é isto?

O ministro Roberto Barroso esclareceu que vivemos um ciclo próprio do desenvolvimento capitalista, em que há a substituição de velhas tecnologias e velhos modos de produção por novas formas de produção, num processo chamado de inovação disruptiva.

E mesmo nos municípios a grande verdade é que a modernidade chegou, e os antigos modos de explorar negócios serão gradativamente retirados do mercado (pelo próprio mercado).

É uma ideia que traduz um risco de quem entra no mercado, por designar ideias capazes de enfraquecer ou substituir indústrias, empresas ou produtos estabelecidos.

Nesse cenário, é muito fácil perceber o tipo de conflito entre os detentores dessas novas tecnologias disruptivas e os agentes tradicionais do mercado:

De um lado os players já estabelecidos em seus mercados, por vezes monopolistas.

De outros os novos “ameaçadores”; ou seja, atores que se aproveitam das lacunas de regulamentação de novas atividades para a obtenção de vantagens competitivas (sejam elas financeiras, regulatórias ou tributárias).

A melhor forma de o Estado lidar com essas inovações é tentar produzir as vias conciliatórias possíveis.

Afinal, em última instancia, é direito fundamental do consumidor fruir de um serviço a preço mais baixo (caso seja possível sua disponibilização).

E também é direito do consumidor ter opções possíveis (de variados preços) à sua escolha.

Isso influencia diretamente no bem-estar da população, já que, caso os serviços sejam disponibilizados sempre por uma só pessoa, pelo preço que ela desejar, muitos não terão condições de utilizar.

Para encerrar, sintetizamos os três fundamentos – invocados pelo Min. Barroso –, que impedem os municípios de proibirem a atividade de transporte privado particular de passageiros mediante aplicativo (Uber, 99-e e outros):

O Ministro Roberto Barroso apresentou os três fundamentos pelos quais considerou inconstitucionais as leis municipais impugnadas:

  • Em primeiro lugar, a Constituição estabelece, como princípio, a livre iniciativa. A lei municipal não pode arbitrariamente retirar determinada atividade econômica da liberdade de empreender das pessoas, salvo se fundamento constitucional autorizar a restrição imposta. A edição de leis ou atos normativos proibitivos, pautada na exclusividade do modelo de exploração por táxis, não se amolda ao regime constitucional da livre iniciativa.
  • Em segundo lugar, a livre iniciativa significa livre concorrência. A opção pela economia de mercado baseia-se na crença de que a competição entre os agentes econômicos e a liberdade de escolha dos consumidores produzirão os melhores resultados sociais.
  • Por fim, é legítima a intervenção do Estado, mesmo em um regime de livre iniciativa, para coibir falhas de mercado e para proteger o consumidor. Entretanto, são inconstitucionais a edição de regulamentos e o exercício de fiscalização que, na prática, inviabilizem determinada atividade. A competência autorizada por lei para os municípios regulamentarem e fiscalizarem essa atividade não pode ser uma competência para, de maneira sub-reptícia ou implícita, interditar, na prática, a prestação desse serviço.

Eis a síntese da decisão:

 STF. Plenário. RE 1054110 e ADPF 449, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 08 e 09/05/2019”.

No exercício de sua competência para regulamentação e fiscalização do transporte privado individual de passageiros, os municípios e o Distrito Federal não podem contrariar os parâmetros fixados pelo legislador federal na Lei 13.640 e pela Constituição Federal.

                                                                  (…)

A proibição ou restrição da atividade de transporte por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional, por violação aos princípios da livre iniciativa e livre concorrência. ”

Como se vê, os municípios não podem criar barreiras de entrada e controle de preços para o transporte individual privado por aplicativos.

Esperamos que estas informações tenham sido úteis.

Um forte abraço da equipe B&B

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