Crimes de Responsabilidade Dos Prefeitos

Crimes de Responsabilidade Dos Prefeitos

Um estudo atualizado dos crimes de responsabilidade dos Prefeitos à luz de recente decisão do STF.

A 1ª Turma do STF firmou seguinte entendimento: Prefeito que utiliza valores destinados a programa de saúde, para pagamento de dívidas da Secretaria de Saúde com a previdência municipal, pratica o crime do art. 1º, III, do DL 201/67, vejamos:

“Configura o crime do art. 1º, III, do DL 201/67, a conduta do Prefeito que utiliza verbas oriundas do Fundo Nacional de Saúde (vinculadas a determinado programa de saúde) para o pagamento de débitos da Secretaria Municipal de Saúde junto ao instituto de previdência do Município. “

Vamos entender isto melhor:

O delito previsto no art. 1º, III, do DL 201/1967 consiste em ato do administrador público que:

  1. Aplica verba pública;
  2. Não em proveito próprio;
  3. Mas sim em destinação diversa da prevista em lei.
  4. Mesmo sendo para a própria administração municipal (deslocamento contábil para fins diversos da vinculação legal e constitucional).

Repise-se: Não se trata de desviar em proveito próprio:

Para a configuração deste crime, é irrelevante verificar se houve, ou não, efetivo prejuízo para a Administração Pública. STF. 1ª Turma. AP 984/AP, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 11/6/2019(Info 944).

O caso concreto julgado pela Corte, pelo que se extrai da denúncia da Promotoria de Justiça Macapaense, ocorreu o seguinte:

Nos idos de   2011, Roberto Góes, Prefeito de Macapá (AP), e dois de seus Secretários Municipais, teriam aplicado indevidamente verbas públicas no montante de R$ 858 mil reais, oriundas do Fundo Nacional de Saúde – vinculadas ao Programa DST/AIDS –, para pagar dívidas da Secretaria Municipal de Saúde junto à Macapá Previdência (Macaprev).

Dito de outro modo, as verbas destinadas ao programa de saúde foram utilizadas para pagamento de débitos da Secretaria com o

Instituto de previdência Municipal.

Pois bem. Como gestor ou membro de administração pública municipal, você poderia me perguntar:

Dr., qual o delito, em tese, praticado pelo Prefeito e Secretários?

R: De acordo com decisão do STF, o agente/servidor público, no caso, praticou delito previsto no art. 1º, III, do Decreto-Lei 201/67:

Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:

(…)

III -desviar, ou aplicar indevidamente, rendas ou verbas públicas;

(…)

  • 1º Os crimes definidos nêste artigo são de ação pública, punidos os dos itens I e II, com a pena de reclusão, de dois a doze anos,

e os demais, com a pena de detenção, de três meses a três anos

Vale aqui uns parênteses: o Decreto-Lei 201/67, apesar de ser chamado de “decreto”, é um ato normativo com status de lei ordinária e que prevê, em seu art. 1º, uma lista de crimes cometidos por Prefeitos no exercício de suas funções.

O DL 201/67 traz também regras de processo penal que deverão ser aplicadas quando ocorrerem os crimes ali previstos. Vale repisar, então, que o DL 201/67 foi recepcionado pela CF/88 como lei ordinária (Súmula 496 do STF).

Destas informações podem desdobrar algumas importantes indagações as quais, de antemão, respondo:

Dr., Mas o que são crimes de responsabilidade?

R: Tecnicamente falando, crimes de responsabilidade são infrações

Político-administrativas praticadas por pessoas que ocupam determinados cargos públicos.

Caso o agente seja condenado por crime de responsabilidade, ele não receberá sanções penais (prisão ou multa), mas sim sanções político-administrativas (perda do cargo e inabilitação para o exercício de função pública).

Dr., o art. 1º do Decreto acima não prevê crimes de responsabilidade?

R: NÃO. O art. 1º afirma que os delitos nele elencados são “crimes de responsabilidade”. Apesar de ser utilizada essa nomenclatura, a doutrina e a jurisprudência “corrigem” o legislador e afirmam que, na verdade, esses delitos são crimes comuns, ou seja, infrações penais iguais àquelas tipificadas no Código Penal e em outras leis penais.Desse modo, o que o art. 1º apresenta são os chamados crimes funcionais, cometidos por Prefeitos.

Dr., Então o Decreto não prevê crimes de responsabilidade dos prefeitos?

R: Prevê sim, porém, em outro artigo. Os verdadeiros crimes de responsabilidade dos Prefeitos estão previstos no art. 4º do DL 201/67.

Dr., então quer dizer que, em caso de crimes funcionais, os prefeitos só podem responder pelo art. 1º do DL 201/67?

R: NÃO. Há outros crimes funcionais previstos também no código penal. Os Prefeitos poderão responder também pelos crimes funcionais previstos no Código Penal, na Lei de Licitações (Lei n. ° 8.666/93) e em outras leis penais, desde que tais condutas não estejam descritas no  art. 1º do DL 201/67. Os crimes tipificados nas demais leis somente incidirão para os Prefeitos se não estiverem previstos no DL 201/67, que é norma específica.

DR, o que o DL 201/67 protege ao punir funcionalmente os Prefeitos?

R: O Bem jurídico protegido pelos tipos do art. 1º o patrimônio da Administração Pública e a moralidade administrativa.

Quem responde por esses crimes?

R: Estes são os chamados crimes próprios. Somente pode ser praticado pelo Prefeito (ou por quem esteja no exercício desse cargo, como o Vice- Prefeito ou o Presidente da Câmara de Vereadores).

DR., é possível a coautoria e a participação?

R: SIM. É possível que ocorram as figuras da coautoria e da participação, nos termos do art. 29 do CP. Em outras palavras, além do Prefeito, outras pessoas podem responder pelo delito como coautores ou partícipes. Exs: um Secretário Municipal, um contador, um assessor etc.

DR., Se o sujeito comete o crime do art. 1º do DL 201/67, mas termina seu mandato sem que ele seja  denunciado, é possível que ele responda pelo delito mesmo não sendo mais Prefeito?

R: Claro que sim. Existem dois enunciados afirmando isso:

  • Súmula 164-STJ: O prefeito municipal, após a extinção do mandato, continua sujeito a processo por crime previsto no art. 1º do Dec. lei n. 201, de 27/02/67. 
  • Súmula 703-STF: A extinção do mandato do Prefeito não impede a instauração de processo pela prática dos crimes previstos no art. 1º do DL 201/67. Julgamento pelo STF Roberto Góes deixou a prefeitura e assumiu o cargo de Deputado Federal em 2015.

EXPLICANDO O CASO CONCRETO E DECISÃO DO STF (RESTRINGINDO O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO):

O Promotor ofereceu denúncia contra Roberto Góes pelo delito acima explicado e, em 2016, o STF recebeu a peça acusatória.

Dr.,Por que a denúncia foi recebida pelo STF?  

R: Porque, nesta época, Roberto Góes já havia deixado o cargo de Prefeito e tinha sido eleito Depu tado Federal (art. 102, I, “b”, da CF/88). Com isso, o STF recebeu a denúncia e passou a realizar a instrução do processo.

Ocorre que, em maio de 2018, o STF decidiu restringir o foro por prerrogativa apenas para os crimes cometidos durante o exercício do mandato e que tenham relação com ele.

Nessa linha foi fixada a seguinte tese:

O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas. STF. Plenário. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/05/2018 (Info 900).

Essa tese foi definida na sessão de julgamento do dia 03/05/2018. Ocorre que havia centenas de inquéritos e processos criminais tramitando no STF envolvendo autoridades com foro por prerrogativa de função.  Um desses processos era o de Roberto Góes.

Daí surgiu a dúvida: essa tese já se aplica imediatamente para esses processos?

R: SIM. O STF decidiu que essa tese interpretativa deveria ser aplicada imediatamente aos inquéritos e processos em curso.

O que significou isso, na prática?

R: A assessoria dos Ministros realizou minucioso levantamento de todos os inquéritos e processos envolvendo autoridades e que estavam tramitando no Tribunal. Em seguida, foram analisados se os crimes imputados às autoridades estavam ou não relacionados com as suas funções. Disto decorreram 2 situações:

  • Se o processo estivesse relacionado com as funções e a autoridade ainda estivesse no cargo: o feito permanecia no STF para ser julgado pelo Tribunal.

Ex: processo envolvendo um Senador que teria recebido vantagem indevida para votar de acordo com os interesses de um grupo econômico. Isso porque, neste caso, a situação se amolda à tese fixada pelo STF.

  • Se o processo não estivesse relacionado com as funções ou a autoridade não mais estivesse no cargo: neste caso, o feito foi remetido para ser julgado pelo juíz de 1ª instância. Ex: processo envolvendo um Deputado Federal que teria praticado crime funcional na época em que era Prefeito. Essa situação não se amolda à tese fixada porque o crime não está relacionado com as funções de Deputado Federal.

Logo, não existe aqui foro por prerrogativa de função, devendo o réu ser julgado em 1ª instância.

O processo de Roberto foi, então, remetido para a 1ª instância?

R: NÃO. Ele continuou no STF. Já Explico o motivo:

Na sessão do dia 03/05/2018, o STF, além da restrição acima explicada, também fixou uma segunda tese, dizendo o seguinte:

Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo. STF. Plenário. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/05/2018.

Como no processo de Roberto o MP e a defesa já haviam apresentado alegações finais, a instrução já tinha se encerrado e o STF entendeu que não havia motivo para enviar o processo para a 1ª instância, sendo mais razoável concluir o julgamento na Corte.

Podemos resumir (e concluir) o tema da seguinte maneira:

  • Com a decisão proferida pelo STF, em 03/05/2018, na AP 937 QO/RJ, todos os inquéritos e processos criminais que estavam tramitando no Supremo envolvendo crimes não relacionados com o cargo ou com a função desempenhada pela autoridade, foram remetidos para serem julgados em 1ª instância. Isso porque o STF definiu, como 1ª tese, que “o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas”.
  • O entendimento acima não se aplica caso a instrução já tenha se encerrado. Em outras palavras, se a instrução processual já havia terminado, mantém-se a competência do STF para o julgamento de detentores de foro por prerrogativa de função, ainda que o processo apure um crime que não está relacionado com o cargo ou com a função desempenhada.

Isso porque o STF definiu, como 2ª tese, que “após o  final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de  alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o  agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.”

Nesse mesmo sentido: STF. 1ª Turma. AP 962/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgado em 16/10/2018 (Info 920).

Ok. Entendi por que o STF julgou o crime mesmo ele tendo sido praticado antes do mandato de Deputado Federal. Mas agora quero saber o que o STF decidiu quanto ao mérito.

  1. o réu foi condenado?

R: SIM. Por maioria de votos, a 1ªTurma do STF condenou o réu pelo delito do art. 1º, III, do Decreto-Lei 201/67. Apesar disso, ficou constatada a prescrição em razão do tempo transcorrido entre a aceitação da denúncia e a condenação. A Conduta narrada subsume-se ao crime do art. 1º, III, do DL 201/67ª vez que, na denúncia, se amolda, com precisão, ao tipo previsto no inciso III do art. 1º do DL 201/1967.

Para o STF, os elementos probatórios produzidos na instrução processual demonstram que o réu, com plena consciência da ilicitude dos seus atos, atuou na forma descrita na peça acusatória, ausentes as causas de exclusão da ilicitude ou da culpabilidade. Crime do art.

1º, III, do DL 201/67 não envolve desviar recursos em proveito próprio

O crime previsto no art. 1º, III, do DL 201/1967 consiste em o administrador público aplicar verba pública em destinação diversa da prevista em lei. Não se trata, portanto, de desviar em proveito próprio.

A corte suprema deixou claro que, para a configuração deste crime, é irrelevante verificar se houve, ou não, efetivo prejuízo para a Administração Pública.

Outra questão importante extraída do julgamento é que o STF entendeu que era evidente o conhecimento do fato pelo ex-Prefeito, que assinou a ordem de pagamento para a transferência, a demonstrar domínio do fato e o poder de gestão dos recursos efetivamente empregados em finalidade diversa da estabelecida por lei.

Esclareceu que, na véspera da referida transferência, houve uma reunião com os corréus na qual foi decidida a destinação das verbas. Ressalte-se que um deles até mesmo declarou que o parlamentar tomou conhecimento da operação ilegal descrita na denúncia. Ademais, no mesmo dia da citada reunião, foi enviado ofício do Gabinete da Secretaria Municipal de Saúde, que fez remissão à “determinação superior” e encaminhou à Secretaria Municipal de Finanças a relação das contas referentes às transferências “fundo a fundo”, para que fosse processada a imediata centralização dessas contas em uma única conta.

Conclusão final:

Configura o crime do art. 1º, III, do DL 201/67, a conduta do Prefeito que utiliza verbas oriundas do Fundo Nacional de Saúde (vinculadas

a determinado programa de saúde) para o pagamento de débitos da Secretaria Municipal de Saúde junto ao instituto de previdência do Município.

O delito previsto no art. 1º, III, do DL 201/1967 consiste em o administrador público aplicar verba pública em destinação diversa da prevista em lei. Não se trata, portanto, de desviar em proveito próprio.

Para a configuração deste crime, é irrelevante verificar se houve, ou não, efetivo prejuízo para a Administração Pública – STF. 1ª Turma. AP 984/AP, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 11/6/2019(Info 944).

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