Foi publicada a Lei nº 13.866/2019, que altera a Lei Orgânica do TCU para prever a possibilidade de que as denúncias formuladas ao Tribunal de Contas da União sejam sigilosas.
Curioso notar que a Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado do Paraná (Lei complementar 113 de 15 de dezembro de 2005) há 14 anos já trazia previsão muito moderna e semelhante.
Vamos entender isto melhor.
Denúncias formuladas ao TCU
A Lei nº 8.443/92 é a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União.
Esta Lei prevê, em seu art. 53, que qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o TCU.
O denunciante pode solicitar que seu nome permaneça em sigilo? Ex: Childeryko faz uma denúncia no TCU, identificando-se normalmente, mas pede para seu nome não ser revelado para ninguém (muito menos para os agentes públicos que praticaram a irregularidade). Isso é possível?
Esse tema deve ser analisado em três momentos históricos distintos:
- Momento inicial: redação inicial da Lei nº 8.443/92 (SIM)
Ao formular a denúncia junto ao TCU, o denunciante poderia pedir ao Tribunal para manter seu nome em sigilo.
A lei previa que o TCU deveria manter o nome do denunciante em sigilo até decisão definitiva sobre a matéria.
Depois de decidir se a denúncia era ou não procedente, o TCU estaria autorizado a:
- retirar o sigilo (permitindo que o nome do denunciante fosse revelado);
- manter o sigilo (não revelando nunca o nome do denunciante).
Isso constava do § 1º do art. 55 da Lei nº 8.443/92:
Art. 55. No resguardo dos direitos e garantias individuais, o Tribunal dará tratamento sigiloso às denúncias formuladas, até decisão definitiva sobre a matéria.
- 1º Ao decidir, caberá ao Tribunal manter ou não o sigilo quanto ao objeto e à autoria da denúncia.
(…)
- Momento subsequente: Senado suspende a eficácia do § 1º a partir de decisão do STF em controle difuso (NÃO)
Em 2003, o STF, ao julgar um mandado de segurança, decidiu, incidentalmente, que esse § 1º do art. 55 da Lei nº 8.443/92 era inconstitucional por violar o art. 5º, incisos V, X, XXXIII e XXXV, da Constituição Federal:
Art. 5º (…)
V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
(…)
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
(…)
XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
(…)
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
Á época, o STF decidiu que o TCU não poderia deixar de fornecer o nome do denunciante. Isso porque a CF/88 não admite o anonimato
Conforme argumentos do então Min. Carlos Velloso, relator do Mandamus:
“(…) protegido o denunciante pelo sigilo, isso pode redundar no denuncismo irresponsável, que constitui comportamento torpe.
(…)
A Constituição assegura a todos o direito ao recebimento dos órgãos públicos de informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (CF, art. 5º, XXXIII).
(…)
No caso, a negativa de fornecimento do nome do denunciante impede que o denunciado ingresse em Juízo, impede assim que seja prestada a tutela judicial numa hipótese em que a Constituição expressamente autoriza seja buscada essa tutela (CF, art. 5º, incisos V e X).
(…)
Assim posta a questão, tenho como ofensiva à Constituição, art. 5º, incisos V, X, XXXIII e XXXV, a expressão, constante do § 1º do art. 55 da Lei 8.443, de 16.7.92, “manter ou não o sigilo quanto ao objeto e à autoriza da denúncia” e ao contido no disposto no Regimento Interno do TCU, que estabelece que, quanto à autoria da denúncia, será mantido o sigilo.”
(STF. Plenário. MS 24405, Rel. Min. Carlos Velloso, julgado em 03/12/2003)
Diante dessa decisão do STF, o Senado Federal – nos termos do art. 52, X, da CF/88 –suspendeu a eficácia da expressão “manter ou não o sigilo quanto ao objeto e à autoria da denúncia” constante do § 1º do art. 55 da Lei nº 8.443/92 e da previsão do Regimento Interno do TCU, que permitiam a manutenção do sigilo do autor da denúncia.
Dito de outro modo, depois dessa decisão do STF e da resolução do Senado, o TCU não mais podia manter em sigilo o nome do denunciante em nenhuma hipótese.
Temendo retaliações – e sem ter mais como pedir o sigilo de seus nomes –, muitas pessoas começaram a relatar irregularidades para o TCU de forma anônima (carta/e-mail anônimo)
Isso obrigou O TCU criar, estrategicamente, duas saídas; isto é, duas espécies de comunicação de irregularidade:
- denúncia: formalizada nos termos do art. 53 da Lei nº 8.443/92, não podendo ser feita de forma anônima.
- relato de suspeita de irregularidade (“denúncia informal”), feita para a ouvidoria do TCU, podendo ser realizada de forma anônima.
- Momento Atual: Lei nº 13.866/2019
A Lei nº 13.866/2019 acrescentou o § 3º ao art. 55 da Lei nº 8.443/92 inserindo novamente a previsão de que o TCU poderá manter em sigilo a identidade do denunciante. Confira o dispositivo:
Art. 55. (…)
- 3º Ao decidir, caberá ao Tribunal manter o sigilo do objeto e da autoria da denúncia quando imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.
Note que, na parte final do § 3º., Para tentar “blindar” esse dispositivo, o legislador procurou enquadrá-lo na exceção contida no art. 5º, XXXIII, da CF/88:
Art. 5º (…)
(…)
XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
Ponderações finais acerca do tema:
- A Lei nº 13.866/2019 é um exemplo de “superação legislativa da jurisprudência”, também conhecida como “reação legislativa”.
O STF, segundo a CF/88, tem a missão de dar a última palavra em termos de interpretação da Constituição. Isso não significa, contudo, que o legislador não possa interpretar o Texto Constitucional. O Poder Legislativo também é intérprete autêntico da Constituição e, por isso, pode editar uma lei ou Emenda Constitucional, para superar o entendimento anterior, ou provocar nova decisão do STF, a respeito de determinado tema, mesmo que seja assunto já decidido em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Esse procedimento denomina-se “reação legislativa” ou “superação legislativa da jurisprudência”; forma de “ativismo congressual”, por qual o Congresso Nacional reverte situações de autoritarismo judicial do STF, estando, portanto, amparado no princípio da separação de poderes.
- Esse novo § 3º do art. 55 da Lei nº 8.443/92 é extremamente perigoso para o denunciante, não oferecendo garantias sólidas de que seu nome será mantido em sigilo. A expressão “imprescindível à segurança da sociedade e do Estado” é muito subjetiva, e não resguarda de modo claro os direitos individuais do denunciante, sendo uma previsão mais voltada à coletividade.
O próprio Min. Carlos Velloso, ao julgar o MS 24405 alhures, esclareceu que a manutenção do sigilo do denunciante não pode ser vista como “imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. Veja:
“A Constituição assegura a todos o direito ao recebimento dos órgãos públicos de informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (CF, art. 5º, XXXIII).
Ora, certamente que não se inclui na ressalva – ressalvadas as informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado – o fornecimento do nome de
alguém que faz denúncias contra um administrador público, denúncia rejeitada, porque improcedente, e que causou, no mínimo, desgaste à imagem do administrador público.”
Desse modo, ainda que o TCU, internamente, decida, ao final, manter o nome do denunciante em sigilo, essa escolha poderá ser impugnada no STF, via mandado de segurança, impetrado pelo “denunciado” e, se o Supremo entender que não há risco à “segurança da sociedade e do Estado”, o nome do denunciante será revelado.
Por fim, insta mencionar que a lei complementar paranaense n° 113, de 15 de dezembro de 2005 – lei orgânica do Tribunal de Contas do Estado do Paraná – já trazia dispositivo moderno e inovador, protetor dos direitos fundamentais dos denunciantes, de modo a garantir a sigilosidade da identidade destes, protegendo-os de represálias.
vale lembrar que, no caso do estado do paraná, o sigilo da identidade do denunciante não é uma possibilidade, mas sim uma imposição, vejamos:
Art. 33. O Tribunal de Contas dará tratamento sigiloso às denúncias formuladas, até decisão definitiva sobre a matéria, a fim de preservar direitos e garantias individuais.
(…)
Art. 143. Compete à Comissão de Ética e Disciplina:
I – receber denúncias, de qualquer cidadão ou entidade, devidamente fundamentadas, contra membro(s) do Tribunal de Contas, devendo ser mantido sigilo quanto à identidade do denunciante;
(…)
Art. 281. Os processos de denúncia possuem caráter sigiloso e acesso restrito às partes, até o julgamento definitivo.
- 1º São considerados de caráter sigiloso os processos que requeiram medidas especiais para divulgação e conhecimento, tendo em vista a preservação dos direitos e garantias fundamentais das partes.